Gargas Tropical

sábado, junho 25, 2005

Gabriel

Temos imagens que nos perseguem uma vida inteira. imagens que nos marcam profundamente, e que em última análise acabam por nos transformar, por se tornarem parte de nós.
Nesta quarta-feira passei por uma experiência que julgo que dificilmente virei a esquecer.
Ainda hoje recordo aqueles rostos, como se estivesse a acontecer...

Um dos projectos que estamos a realizar é o da recuperação de nove escolas para crianças com diversos tipos de deficiências. O processo está no início (apesar de já levar 6 meses em cima), estando agora a começar um conjunto de reuniões com o ministério para determinar o programa e a extensão dos trabalhos.

Nesse dia fui visitar quatro dessas escolas, nomeadamente: uma escola para crianças com deficiências mentais, uma para alunos com deficiências motoras, uma para surdos e uma para miúdos com problemas psicológicos e de comportamento severos.

No fim do dia senti-me profundamente agoniado e triste com a realidade que vivi...

São várias as imagens que ainda hoje guardo. Uma criança a gritar o dia todo fechada num quarto, dezenas de miúdos a correr nos corredores nas cadeiras de rodas. Corpos que não obedecem aos movimentos...

Vi uma tristeza imensa nos olhos daquelas crianças, e sobretudo um desejo enorme de alguma atenção. Como me olhavam com curiosidade, e como se aproximavam... Abraçavam-me, queriam uma festa. Queriam uma fotografia.

Senti-me um estranho a devassar um mundo para o qual não estava preparado (pelo menos naquela extensão...)

As escolas, em maior ou menor grau, a única coisa que merecem é uma demolição total. É deshumano o estado destas instalações que nunca ninguém quer ver. Como é fácil ignorar...
É uma realidade que choca, que intimida. As pessoas fogem dela, o governo foge dela. São projectos sem prestígio, com pouco dinheiro.

Quem sofre são as crianças... tantas.
Vivem, muitas delas, nas próprias escolas, em camaratas que mais não são do que velhos barracões.

Na última escola um miúdo acompanhou-nos durante toda a visita. não teria mais de 7 ou 8 anos... Chamava-se Gabriel. Simpatizou comigo. Gostou da câmara. Queria fotografias, queria ser fotografado... Naquele momento quis ser fotógrafo. Tirou-me a câmara das mãos e segui-nos sempre, com o olho na objectiva, apontando, disparando.
Mas houve outros miúdos.
Surdos que, silenciosamente e com gestos suaves, nos indicavam o caminho numa escola perturbada por um silêncio gélido.
Crianças que, perdidas no espaço, precisavam de uma mão para as guiar até à sala.
Miúdos que habituados a viver com a deficiência empurravam os colegas nas cadeiras de rodas com uma dedicação, amizade e carinho tão difíceis de encontrar na maioria das pessoas, que tão correntemente aprenderam a virar a cara... e a ignorar.

Quero muito fazer estes projectos. Pelo que vi, pelo Gabriel e por todas as outras crianças. Não sei ainda o que nos espera, que dinheiro temos disponível para trabalhar. Cada vez me atrai menos a arquitectura enquanto profissão destinada apenas a satisfazer as grandes fortunas. Cada vez mais quero procurar uma arquitectura que possa servir as pessoas, que possa melhorar uma vida.

Não sei que meios teremos... terão que ser os suficientes...


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segunda-feira, junho 20, 2005

Línguas

Nunca pensei, quando vim para Trinidad, conhecer tanta gente vinda de sítios tão diferentes. Claro que existem os Trinis (muitos), mas depois há também:

Venezuelanos
alemães
Holandeses
Americanos
Ingleses
Belgas
Brasileiros
Mexicanos
Canadianos
Espanhóis
...
...

Já perdi a conta...

Nestes encontros predominam 3 línguas, o Inglês, o Castelhano, e o Flamengo/Holandês...
Jantares, Bares... É rara a saída em que não haja um pouco de cada uma. E como se tornam loucos e agradavelmente interessantes estes momentos.
As conversas desenvolvem-se sempre como uma troca de culturas e experiências vividas por este mundo feito de pessoas.
No barulho lembram-me uma torre de Babel onde todas as palavras se misturam num vendaval de sons distintos. Começamos a falar em Inglês (sempre) mas rapidamente deixamos a nossa língua soltar-se. Como é frequente falar com venezuelanos em Português, ao mesmo tempo que os oiço em castelhano. Sigo conversas em holândes e Alemão das quais não percebo uma palavra, e respondo na minha língua para os baralhar ainda mais.
Depois "brincamos" com os países dos outros, com as línguas, defendendo sempre os "nossos".

Sobretudo fica sempre a sensação de um alargamento de horizontes e ideias. Aproximamo-nos de pessoas tão diferentes, conhecemos outras vivências. Tornamo-nos mais tolerantes. Na mistura de sensações e opiniões acabamos sempre a noite com a imagem de ter passado por um conjunto de países, lugares que antes não conhecíamos.

Feriados

Pois é... mais um fim-de-semana prolongado.

Desta vez o motivo é a celebração do "Labour Day", o equivalente ao nosso 1º de Maio (que aqui não se festeja) mas sem manifestações... É um feriado interessante. É considerado um direito adquirido, de tal modo que se calha a um Domingo (como aconteceu este ano) é transposto para segunda-feira :)

Ás vezes conto os feriados que já tive este ano... (carnaval - 2 dias, páscoa - 3 dias, festas religiosas hindus - 3 dias, labour day), e tudo desde fevereiro...

Trinidad é um país onde a percentagem de hindus anda muito próxima da de cristãos. Isto significa que os feriados multiplicam. Não há uma religião oficial, mas feriado religioso é sagrado... e é para cumprir. Somem-se depois os feriados institucionais (labour day, dia do país, etc...) e temos férias de fazer roer de inveja Portugal (por si só já conhecido pela quantidade de dias de descanso que tem).

Acaba, ao fim de algum tempo, por criar a sensação de que estou continuamente a ter um ou dois dias de férias ao longo do ano. As semanas encolhem, o tempo voa. Nunca me senti (a trabalhar) tão descansado como aqui. Como se tornaram longínquos na minha memória os finais de tarde encerrado no atelier, as noitadas e directas, os fins-de-semana.

quinta-feira, junho 16, 2005

Água???

Pois... não tenho...

A sério? desde quando?...
Desde Quinta...

Ah! não é assim tão grave...
Pois não!... desde Quinta... da semana passada...





Ou seja,

Estava uma quinta-feira radiosa, quando entrei em casa... (estou a falar da quinta que passou há já uma semana). Ia preparado para um banho... mas qual quê... parece que a torneira estava com algum receio de pingar... Pensei que seria só vergonha, e que com o tempo lá voltaria a escorrer água... mas não.
Sexta-feira de manhã a seca continuava, e comecei a estranhar. Sobretudo porque na casa do vizinho corria água...
Bem, lá falámos com o senhorio e chamámos um canalisador que me apareceu em casa no sábado de manhã.
Após uma "ajuda" preciosa, constatou que de facto não havia água e concluiu que o problema era da companhia. Iniciei então um percurso surreal pelos telefones da WASA (a EPAL cá da zona), ficando com a consciência que afinal os nossos serviços públicos até são bastante eficientes.
Marquei um número, fui redireccionado e redireccionado novamente. Novo número, nova telefonista, numa sucessão de perguntas repetitivas: "então e os vizinhos têm água?... Sim têm", "já verificou a válvula?... Não lhe posso mexer, tem uma tampa que só abre com as vossas chaves..."
Perguntei se a àgua tinha sido cortada (talvez antecipando um senhorio que não parece ser muito dado a este tipo de obrigações...), não tinha sido responderam-me.
Ao fim de uma hora (talvez mais....) lá os convenci a mandar alguém. Disseram que sim, que alguém viria, mas não sabiam quando.

E o tempo passou, sempre seguido de telefonemas sucessivos, todos os dias, de manhã, à tarde... e a resposta sempre a mesma. Até que na terça-feira me ligam a dizer que a água não está paga, e que temos uma conta de 1130TT$.

Fiquei parvo, o normal é uma conta de 20 a 30TT$, mas parece que a água não era paga há mais de 4 anos...

Enfim, convencemos o senhorio a pagá-la nesse mesmo dia, mas claro, o processo voltou ao início. Desta vez entrámos em contacto directo com o supervisor, na esperança de ser mais rápido, mas parece que me tenho mesmo é de deixar de ilusões. De facto vieram, mas no sábado apenas.
Apareceram em grande aparato, três pessoas, uma carrinha cheia de ferramentas e um tractor (daqueles enormes, que ocupam a estrada toda), prontos para "rebentar" a rua toda... Prometia espectáculo...
Mas assim que abriram o primeiro buraco, junto à válvula, viram que havia água. Lá se foram as minhas perspectivas de ver as torneiras a funcionar no fim-de-semana. Da parte da WASA estava tudo bem, foi necessário chamar de novo o canalisador...

Mas como todas as telenovelas que se prezem, claro que o final terá que ser demorado. E para ajudar nada melhor que um fim-de-semana prolongado. Fico assim à espera do próximo capítulo, com sorte a acontecer amanhã: "Rebentar o chão do jardim", e com a esperança secreta (e possivelmente utópica) de não ultrapassar a barreira das 2 semanas (recorde que pertence à Leen e ao Jannes).




... Felizmente que existe um Bernard que me deu as chaves de casa para ir tomar banho, encher os garrafões e lavar a roupa, e a Rosie (mulher do Bernard) que me convida constantemente para lá jantar depois do duche.

sábado, junho 11, 2005

Pássaro no muro




Foi à saída do atelier. Quando estava parado na fila de trânsito.


loucura colectiva....

Na quinta feira fui ao cinema. O tal nas instalções da fábrica Fernandes. O filme desta semana era o ônibus 174, filme brasileiro. Pude, por uns momentos, gozar o prazer de ser o único naquela sala capaz de compreender o que se estava a passar sem recorrer a legendas.

O filme (ou documentário, melhor falando) retratava as horas em que um ex-menino de rua fez um autocarro refém, com cerca de 10 pessoas lá dentro...
Sobretudo mostrava os vários lados da sociedade. Como se chega a menino de rua. Como os ignoramos.... fingimos que não existem. Como desesperam: por um afecto, atenção.... uma oportunidade que ninguém está disposto a dar.
Mostrava a falta de especialização da polícia. Vista mais como um trabalho de desempregado do que como uma profissão...
Junte-se tudo e no final tem-se uma situação explosiva que mais cedo ou mais tarde rebenta... E naquele caso rebentou. O rapaz tinha estado na candelária. Fugiu de casa depois de ver a mãe morrer degolada à frente dele. Passou pela prisão, por casas de correcção. Pela droga. Estava louco.

Não matou ninguém. Quando saiu do autocarro a polícia carregou sobre ele. Mataram a rapariga que ele tinha como refém. Mataram-no, sufucado, quando o levavam no carro celular.

Voltamos a ter a consciênca da locura no Brazil. Na falta de soluções para evitar estes problemas. Na falta de especialização para lidar com estes dramas...

Trinidad parece querer seguir o mesmo caminho. A violência aumenta... ninguém sabe como a combater. A solução são helicópteros, polícias com metrelhadoras, exército a entrar nos bairros complicados...
A televisão e os jornais expõem a vida toda das pessoas. Com nome completo e morada... Exploram o drama ao jeito dos EUA. Fazem a TVI parecer suave.

A última notícia foi a que me custou mais a engolir... Trinidad tem na legislação a pena de morte, mas não a aplicavam desde os anos 90 (sendo que entre 90 e 98 executaram "apenas" 2 pessoas...)
Esta semana anunciaram nova execução. A acontecer segunda-feira, às 6h00. Hora morta, em que todos dormem, em que ninguém quer saber do que aconteceu...
E outra encontra-se também já prevista... embora sem data marcada, num conjunto de medidas para travar o crime, que continuam a esquecer por completo toda a situação económica e social em que o país se encontra.

Assustador mesmo é a loucura em que toda a gente entrou. Ouvir dizer na rádio "matem-nos todos".... o que é que aconteceu às pessoas?....

terça-feira, junho 07, 2005

yeah... we took a little shortcut there...

Que é como quem diz, "não tivemos minimante para nos chatear..."

É que esta foi a expressão usada pelo velhote Mr. Ellis, o nosso colaborador medidor orçamentista (ok, conversa de arquitecto) quando se viu confrontado hoje com todas as falhas do documento que nos entregou...
Ou seja, mais duas semanas à espera que tudo fique pronto. Entretanto os nossos desenhos "repousam" sossegados em cima da mesa, depois de uma maratona de 3 dias para os dobrar... Não, não somos assim tão lentos... O projecto tem 95 desenhos A1 para dobrar, e "só" temos que ter prontas 13 colecções...

Mas ainda me pergunto para que é que nos chateamos com tanto detalhe... Como "admiro" o sentido prático da CEP (engenheiros de estruturas)...