sábado, janeiro 28, 2006

"Panorama"

Ausente da escrita... mas não só.
Ausente de casa, da praia, das noites de sexta-feira.
Longe dos livros, da fotografia.
Longe de toda uma vida que aqui construi durante um ano, de um ritmo que me habituei a viver mas que de momento é inexistente.

Longe de Trinidad... completamente em Trinidad.
Porque o Carnaval está quase, e para mim começa já no dia 18.

Sempre me surpreendeu a força de vontade e alienação que observo (sem conhecer, pois nunca lá estive) nos brasileiros quando o tema é o Carnaval.
As escolas de Samba, os meses longos de ensaios, de preparação de fatos, carros. Um esforço colectivo tremendo, uma vida inteiramente dedicada a um único momento.

Nunca fui capaz de compreender como é possível tamanha dedicação a uma festa, momento tão efémero. E no meio de expressões como "são doidos", "não sei como aguentam".... nunca deixei de alimentar um certo fascínio pela dedicação e verdadeiro amor com que se entregam a uma celebração como esta.
Há muito tempo que não sou grande fã do carnaval. Para mim, português, apenas uma festa de máscaras em que cada um sai à rua por uma noite. Um feriado no meio do ano.

Cheguei a Trinidad o ano passado no dia 5 de Fevereiro, Sábado de Carnaval. Vinha curioso, pois sabia já que aqui a importância destes dias é enorme.
Fui recebido no aeroporto pelo Bernard, depois de 15 horas de voos, e levado directamente para o palco "Panorama". Eram as finais das Steelbands, e recordo-me ainda hoje como fiquei arrepiado e rendido ao espectáculo que acabava de ver.

Meses depois, talvez Julho, juntei-me a uma das bandas mais antigas, os "Invaders", onde fui aos poucos aprendendo a tocar um pan. Nunca toquei ao vivo, pois não sei o repertório da banda, mas lá fui fazendo os ensaios.

Este ano, no meu regresso, já sabia que ia ser diferente. Os ensaios continuam, mas agora há um objectivo muito especial, as finais do "Panorama", onde irei tocar também.
Os ensaios começaram há pouco mais do que duas semanas, e a um ritmo intensivo de 4 horas por dia (7 a 8 horas nos sábados e domingos) aprende-se o grande tema. Sem pausas...

Sim... é um esforço descomunal para aprender uma única música, possivelmente mais difícil que todas as outras juntas.

O Panorama é uma competição onde ganha a banda que apresentar a música mais completa.
Competição de virtuosismo, velocidade, coesão.

A música é soca tocada a um ritmo completamente alucinante por 120 pessoas e não tem dois momentos iguais. O tempo aproxima-se das 220 batidas por minuto (imaginem dar ao pé 220 vezes num minuto enquanto acompanham o tema...) e a música, quando completa, prolongar-se-á por cerca de 7 ou 8 minutos.
Mas descolando-me um pouco de todos estes números... tão abstractos para quem não teve a hipótese de assistir a um ensaio.

Existe um "arranjista" (não sei se será este o termo certo...) que traz consigo a música. É um maestro e compositor ao mesmo tempo.
O tema, como sempre nas steelband, é o de uma canção já existente.
A nossa é uma música nova, ainda por lançar, homenagem a um outro arranjista, o Bradley, que morreu em Dezembro numa semana em que nos ensinava um parang.

O nosso "maestro" é "deus", ou assim visto. Não é contestado, não é contrariado. A banda é, até Fevereiro, dele apenas, e todos lá fazemos o que nos pede.

Aparece, pontual, e ensina aos poucos, mas extremanente depressa, as notas.
A música aprende-se por compassos, e só avança quando os anteriores estão bem decorados.

A banda está dividida em secções:

"Tenores"
"duplo-tenores"
"Segundos"
"guitarras"
"violoncelos"
"quatros"
"baixos"
etc...

... correspondendo cada uma a um tipo de instrumento.
De momento somos mais de 60 pessoas, e todos os dias o número aumenta.
E faltam ainda cerca de 40 vindos dos EUA, trinis emigrantes que virão de propósito para tocar no Carnaval

Cada grupo toca algo diferente, e o resultado, quando ouvido em conjunto é avassalador.
O barulho é maior do que o de uma banda de rock com os amplificadores no máximo, e o algodão nos ouvidos tormou-se obrigatório.
A música é lindíssima e completamente devastadora quando tocada tantas vezes seguidas...

Mas impressionante é a devoção das pessoas, à qual acabei por me juntar.
Dentro de mim foi uma decisão talvez natural, mas complicada de tomar. Tenho consciência de que até fevereiro a minha vida será apenas isto... alienado de tudo o resto.
Para tocar no "panorama" não se podem ter segundos objectivos ou interesses.

Resolvi contudo tentar. Viver o Carnaval uma vez na vida de um modo completamente diferente.
Perceber, na primeira pessoa, o que significa esta dedicação, esta loucura colectiva a algo que acaba em poucas noites.
É cansativo... muito. Mas também viciante e gratificante, sobretudo quando no final da noite se põe tudo junto e se ouve o resultado.

O panyard tornou-se a casa de muitos, e há até quem leve o fogão a gás para cozinhar durante os ensaios.
No bar vendem-se bebidas (muitas), frutos secos, sticks para tocar nos pan e cigarros (à unidade).
Os músicos permanecem junto ao recinto o dia todo e os turistas vão chegando aos magotes, chegando a ser mais de vinte a assistir.
Caras que nunca tinha visto vão-se tornando habituais, e dei por mim a ensinar a música a pessoas que chegaram mais tarde e não a aprenderam de início.

A música é treinada incansavelmente. Por vezes repetem-se quatro tempos durante 20 minutos... seguido, seguido, seguido... como se estivesse a tocar um disco riscado. Até soar bem, uniforme, certo.

Etranha-se em nós... Torna-se quase que mecânica. Deixamos, a um certo momento, de ser pessoas. Apenas máquinas a repetir incasavelmente as mesmas dez notas. Até soar.
Até ser música.
O corpo é levado ao limite, e dou por mim a observar os braços sem perceber bem como se mexem tão depressa... como acertam áquela velocidade nas notas.
O treino é tanto que é possível fechar os olhos e tocar... sem falhar...
No fim do dia são as dores nos braços, cada vez menos há medida que o corpo se habitua.
A cabeça limpa-se completamente. As notas soam dentro de mim quando me deito, e continuam quando acordo.

Como se não houvesse mais mundo. Como se não houvesse mais nada que não fosse a música.
Esta música...

O desejo é o primeiro lugar, e a pressão muita.
Embora não tencione repetir a experiência (é demais...), esta quero levá-la até ao fim. Quero subir aquele palco e perceber como 120 músicos lidam com 100 mil pessoas...
Palavras como adrenalina, pressão, não explicam minimanente a febre do momento. As pessoas vivem um ano inteiro para estes dias, e negar-lhes este momento é tirar-lhes tudo.
Quero sentir, dentro de mim, o que é subir ao Panorama.
Descobrir o que move tanta gente a viver deste modo, submetendo-se tantos meses a ensaios rigorosíssimos para sete minutos apenas de "glória"...

Fazer o Carnaval...

7 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Lá estás tu a deixar-nos com pele de galinha!!!

Tenho (temos todos aqui, de certeza) esperança de que alguém grave, para que, como amostra, possamos, ao menos, ouvir esse SOM! Claro que será mesmo só aproximação...

Bjiños

marylight

28/1/06 16:05  
Anonymous Anónimo disse...

Eu que assisti a dois pequenos ensaios (com alguns músicos a faltarem por vezes e com pequenos extractos de músicas)não consigo imaginar o que descreves. Deve ser lindíssimo - o som dos metais ficou-me pelo corpo dentro.
Como diz a marylighit, espero que alguém grave.
Talvez seja boa ideia o Jannes, ou estou a pensar mal?
Beijos Mariavona

28/1/06 19:25  
Anonymous Anónimo disse...

Ainda cá voltei.
É difícil ler o que escreves sem sentir uma pontinha de orgulho por ser tua mãe.
Beijo.

28/1/06 19:38  
Anonymous Anónimo disse...

Subscrevo inteiramente os votos anteriores1
À medida que fui lendo, estava exactamente a pensar - mas não haverá ninguém que grave?
Quem me dera estar aí a assistir!...

Já sabes q nevou em Lx?!!! (Podes ver no blog do João ;-)

Bjcs
Céu

29/1/06 18:57  
Blogger Maria Zezinha disse...

Como não podia deixar de ser.... lá fiquei comovida com a tua maneira de descrever as sensações, os sons, os sentimentos... E, já agora, posso ficar tb orgulhosa de ser tua tia? :)))
E a propósito de neve...imaginas Beja com neve? Foi tão giro!!!! o Vitor parecia um puto a brincar com a neve e a mandar-me com ela.... Beijos grandes dos "congelados" do alentejo

30/1/06 07:18  
Blogger InêsN disse...

que experiência única...

e que bom saber que te aventuraste a vivê-la!

:o)

beijinhos gds!!

30/1/06 11:38  
Blogger fee disse...

Perante um entusiasmo tão grande, uma pessoa nem sabe o que dizer... Espero que o Carnaval te encha o coração!
Beijitos de uma desconhecida, mas que já tem passado por aqui para ler os teus textos:)
Já agora, boa sorte!

3/2/06 17:35  

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